STF não debateu a tese defendida por Temer e seus aliados ruralistas, que preocupa indígenas e quilombolas por ameaçar as demarcações
Por Beatriz Drague Ramos e José Antonio Lima
17 de agosto, 2017.- O Supremo Tribunal Federal (STF) analisou nesta quarta-feira 16 duas ações civis a respeito da legalidade da demarcação de terras indígenas, mas, ao contrário do que era esperado, não analisou o chamado marco temporal, uma tese jurídica que, se confirmada pela corte, poderia ameaçar todas as terras indígenas e quilombolas do País.
As duas ações civis foram abertas pelo estado do Mato Grosso, em 1986 e 1987, com questionamentos a respeito de demarcações de terras indígenas.
Na Ação Civil Ordinária 362, o Mato Grosso pedia indenização pela criação do Parque Indígena do Xingu, a primeira terra indígena brasileira, demarcada por decreto em 1961, pelo então presidente Jânio Quadros. Na Ação Civil Ordinária 366, o Mato Grosso pedia indenização pela demarcação das terras Salumã, Utiariti e Tirecatinga, dos povos Paresi, Nambiwara e Enaewnê-Nawê. Por unanimidade, os ministros acompanharam o voto do relator, Marco Aurélio Mello, e rejeitaram os pedidos do Mato Grosso.
A análise sobre a constitucionalidade do decreto que estabelece procedimentos de demarcação de territórios quilombolas (ADIn3239) foi adiada pois o ministro Dias Toffoli, que estava com o caso, ficou doente e não foi ao Supremo.
Marco temporal
O movimento indígena temia que o STF adotasse a tese do marco temporal durante o debate desta quarta-feira 16. Tal tese teria como resultado restringir genericamente o direito constitucional de demarcação de terras e territórios tradicionais de povos indígenas e comunidades quilombolas caso elas não comprovassem a ocupação das áreas reivindicadas na data da promulgação da Constituição de 1988. Isso desconsideraria todo o processo de expulsão sofrido por essas comunidades.
A tese do marco temporal surgiu ao longo dos anos 2000, na disputa em torno da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A proposição apareceu no voto do então relator do caso, Carlos Ayres Brito. Ela não foi aplicada no caso, mas ainda assim ficou criou um enorme temor nos indígenas. "O [marco temporal] ficou de alguma maneira ali rondando, e os advogados dos fazendeiros passaram a fazer uma pressão bastante grande para que sua aplicação se desse forma ampla em relação às demais terras indígenas do Brasil”, afirma Cleber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Missionário Indigenista (Cimi).
Não só os advogados dos ruralistas começaram a usar a tese como muitos juízes de primeira instância passaram a adotá-las em suas decisões. “Muitos juízes de primeira instância têm aplicado cegamente o marco temporal e determinando reintegração de posses”, afirma o advogado Luiz Henrique Eloy, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), ele próprio indígena. Eloy ressalta que o marco temporal não é uma tese consolidada no STF, mas, por sua aplicação nas varas de primeira instância, impacta a vida dos povos indígenas.
Na leitura de Eloy, a tese é inconstitucional, na medida em que a Constituição de 1988 reconheceu direitos originários anteriores ao próprio Estado. “Não tem como agora tentar se mitigar, relativizar esses direitos que já foram reconhecidos em sua plenitude", afirma. "Além do mais, quando a Constituição reconheceu esse direito sobre os territórios tradicionais, ela não trabalhou em nenhum momento com requisitos temporais”, afirma.
Para os indígenas, a questão é crucial, uma vez que a terra representa sua sobrevivência física e cultural. “A terra é a nossa vida, o direito fundamental para a nossa vida, é a nossa mãe. Ninguém negocia a própria mãe. Estamos defendendo o nosso território, o nosso direito sagrado para manter a nossa cultura e a nossa existência”, afirma David Karai Popygua, índio guarani, que vive em uma comunidade no extremo sul de São Paulo.
Para Popygua, o marco temporal é mais uma tentativa de generalizar o que avalia ser o genocídio dos povos indígenas. Ele afirma que continuará lutando por seus direitos. “E a nossa luta segue. Nas décadas que se passaram, nos anos que se passaram, desde a invasão dos homens brancos”.
O antropólogo Pedro de Niemeyer Cesarino, professor da Universidade de São Paulo e autor de diversos trabalhos sobre o universo ameríndio, analisa o marco temporal como um símbolo do “esquecimento crônico da sociedade brasileira com relação aos seus povos originários”.
Segundo Cesarino, a fixação de uma data arbitrária para a demarcação de terras demonstra a incompreensão sobre as próprias concepções de vínculos dos índios com suas terras, uma vez que tais povos vivem há milênios nesses locais.
Temer e os ruralistas
O debate sobre o marco temporal se tornou mais relevante para indígenas e quilombolas no fim de julho, quando o presidente Michel Temer assinou o parecer GMF-05, da Advocacia-Geral da União (AGU). O documento determinando que todas as demarcações de terra dali para frente deveriam seguir as diretrizes do julgamento do caso Raposa Serra do Sol – e portanto adotar o marco temporal – e veda a revisão dos limites de terras já demarcadas.
A assinatura do parecer se deu logo após a presidente do STF, Cármen Lúcia, pautar o julgamento desta quarta-feira 16. Segundo Eloy, a intenção de Temer, cada vez mais atrelado à bancada ruralista, era tornar o marco temporal a prática oficial do governo na demarcação de terras. “Isso fica expressamente claro a partir do momento que, um dia antes da publicação deste parecer, o deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), membro da FPA [Frente Parlamentar da Agropecuária], publica um vídeo que dizendo que ‘já estava tudo acertado’ e que sairia um parecer vinculante e que eles iam sumular o Marco Temporal”, disse.
Discussão
Durante a votação desta quarta-feira 16, o relator do caso, Marco Aurélio Mello, não tratou do marco temporal, assim como Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Edson Fachin, que votaram na sequência.
Luís Roberto Barroso lembrou que o caso não versava sobre o marco temporal, mas deu a entender ser contrário à tese. Ele lembrou que os parâmetros do caso Raposa Serra do Sol somente se aplicavam àquela ação e afirmou que terras indígenas podem, sim, ser reconhecidas mesmo que os povos não estivessem nelas em 1988.
"[Há] possibilidade de reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, ainda que algumas comunidades indígenas nelas não estejam circunstancialmente por terem sido retiradas à força", afirmou. "Não deixaram suas terras voluntariamente e não retornaram a elas porque estavam impedidas de fazê-lo", disse.
Outro que se manifestou contrário à tese do marco temporal foi Ricardo Lewandowski. O ministro também afirmou que o caso desta quarta-feira não tratava sobre este tema, mas indicou que o Supremo "oportunamente" deve analisar o tema. Isso deveria ser feito, afirmou Lewandowski, com base nos documentos internacionais mais avançados que tratam sobre esse assunto, como por exemplo a convenção OIT 169", disse.
Como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, internalizada à legislação brasileira em 2004, versa sobre o reconhecimento dos direitos territoriais de povos indígenas e quilombolas, a indicação de Lewandowski é de que ele votaria contra o marco temporal.
Gilmar Mendes, por sua vez, não analisou o marco temporal, mas indicou ser contrário a uma reivindicação de ocupação originária muito abrangente. "A depender do conceito que nós adotemos, talvez nós tenhamos que devolver Copacabana aos índios", disse.
O ministro afirmou que, em muitos casos, os indígenas são vítimas do processo de demarcação, em especial quando elas são realizadas e o Estado continua ausente, e criticou pessoas que se autodeclaram indígenas e, em sua leitura, não o são. "Estive estive em Ilhéus [município no sul da Bahia] e fiquei impressionado com os índios de variada ordem... gente andando de motocicleta, alguns negros, alguns brancos, loiros, todos índios. Todos autodeclarados índios", afirmou.
Para Gilmar, o debate a respeito da demarcação de terras não deve ser feito com "demagogia" ou "populismo fácil". "A simples outorga de mais terras aos índios muitas vezes significa negar-lhes acesso a bens básicos", disse. "Esse tema precisa ser discutido nessa perspectiva mais ampla. Não é problema do marco temporal. Eu diria até que o problema do marco temporal é até pouco relevante. A questão hoje é a sustentabilidade", concluiu.
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